Nota e considerações sobre o Componente Sociologia no “Novo” Currículo de Ensino Médio de São Paulo

A Seduc-SP (Secretaria Estadual de Educação de São Paulo) apresentou no dia 19/03, por meio de uma videoconferência, o novo currículo para o Ensino Médio adaptado à Lei 13.415/17 que estabelece a Reforma desta etapa de ensino em âmbito nacional. O documento, considerado preliminar pela Seduc, está em consulta online para professores, servidores, estudantes, familiares e sociedade em geral até o dia 08 de maio de 20202. A Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) Unidade Regional São Paulo, vem expressar, por meio desta nota, algumas considerações em relação a esta versão de currículo apresentada pela Seduc.
Primeiramente cabe notar que os textos relativos à área de Ciências Humanas, bem como às disciplinas que a compõem, são menores que os das demais áreas. Além disso, o texto introdutório da área não aprofunda sua relevância para a formação crítica do educando. O documento em questão é superficial, não demonstrando as particularidades teórico-metodológicas dos diversos campos que compõem a pesquisa social, tampouco mostra a relevância que os princípios metodológicos do estranhamento e da desnaturalização da realidade possuem para a construção do conhecimento filosófico, histórico, geográfico e sociológico. Menciona de maneira rápida e rasa as metodologias de ensino diversificadas, sem explorar o assunto e sem especificar os métodos de que trata, tampouco define quais categorias das ciências humanas poderiam estruturar o conhecimento necessário para o desenvolvimento dos mesmos.
Sobre a Sociologia:
1 – Diferentemente do que afirma o documento, a presença da Sociologia no ensino básico não é recente. Estudos de natureza histórica documentam o ensino da Sociologia em alguns liceus e ginásios ainda no final do Século XIX. Podemos dizer que é recente sua reintrodução como disciplina obrigatória no currículo levando-se em conta a Lei 11.684 de 2008.
2 – Sobre as correntes da Sociologia
No curto espaço dedicado à apresentação da disciplina Sociologia os autores optaram por mencionar um aspecto muito específico e até mesmo secundário da história do ensino de sociologia sem proporcionar sua devida contextualização, importando ainda ressaltar que tais estudos são recentes quando se pensa sobre a Sociologia no ensino básico. Outras questões relacionadas à história do ensino das Ciências Sociais são mais relevantes e mereceriam ser mencionadas de forma mais contundente, como seu caráter intermitente, suas idas e vindas ao currículo ao longo do século XX e as causas deste processo. O modo como o texto foi construído sugere uma polarização que reduz o debate sobre o ensino de sociologia a um conflito entre grupos cristãos e grupos escolanovistas.
3 – O ensino de Sociologia nunca foi incipiente (esta palavra está grafada incorretamente no documento). Como foi dito no tópico anterior, a Sociologia teve uma trajetória intermitente, ora como disciplina obrigatória do curso secundário/médio, ora como optativa ou ausente, oscilando sua permanência no currículo de acordo com os arranjos políticos que influenciavam as propostas de reformas educacionais ao longo do século XX. O texto induz o leitor a erro e não encontra sustentação na literatura sobre o tema.
4 – A Sociologia não se torna novamente obrigatória na segunda metade do século XX. Pelo contrário, foi justamente nesse momento que a disciplina se tornou optativa e se afastou dos currículos do ensino secundário/segundo grau. A disciplina tornou-se obrigatória novamente apenas no início do século XXI.Portanto, o documento comete um erro quando afirma que “Na segunda metade do século XX, sua presença se tornou obrigatória a partir da Lei 11.684/2008” (SEDUC, 2020).
5 – Os autores do texto mencionam muito rapidamente a “natureza científica da Sociologia”, demonstrandoausência de conhecimento sobre tal campo de estudos, pois é óbvio que a Sociologia tem caráter científico, uma vez que se constitui como ciência. O texto não ressalta uma questão importante acerca da disciplina, o fato de ser a tradução dos conhecimentos das três áreas das Ciências Sociais (Antropologia, Ciência Política e Sociologia) sob a denominação Sociologia, por razões que dizem respeito à sua trajetória histórica. Esta ausência é grave, pois o currículo de Sociologia para o ensino médio deve, necessariamente, ser organizado a partir dos conhecimentos e metodologias destas três áreas de conhecimento.
6 – O documento traz uma formulação bastante imprecisa e ambígua ao afirmar que a Sociologia é umadisciplina “adequada” à conjuntura atual da educação básica. Além de não apresentar a conjuntura à qualse refere, o texto pode dar margem a interpretações equivocadas uma vez que o acúmulo científico presente na Sociologia não pode ser avaliado e validado conforme as conveniências conjunturais de uma ou outra política educacional ou de governo. As Ciências Sociais compõem um campo de produção e de sistematização de saberes reconhecido e consolidado, necessário e relevante para a formação crítica e cidadã dos indivíduos. A Sociologia é disciplina indispensável para o ensino médio não somente pela sua capacidade de estimular o estranhamento e a desnaturalização da realidade social (tais princípios epistemológicos são também aplicáveis às demais disciplinas da área de Ciências Humanas) mas também pela sua especificidade de desenvolver um modo de pensar peculiar que desvenda o mundo demonstrando que os fenômenos que atingem os indivíduos também o fazem com a coletividade, daí sua dimensão social. As Ciências Sociais têm a capacidade de demonstrar que questões e problemas que aparentemente são individuais, na verdade, tem causas sociais mais amplas. Além disso, nos possibilitam a reflexão sobre os direitos numa perspectiva histórica, a compreensão sobre as mudanças sociais e seus múltiplos fatores e a apropriação de conhecimentos para o exercício de uma cidadania ativa, elementos essenciais para a construção de uma sociedade democrática.
7 – As Ciências Sociais constituem um campo de conhecimentos amplos e dinâmicos que se expandiram muito no último século, ampliando significativamente sua contribuição para a compreensão das questões sociais por meio de uma gama variada de pesquisas científicas. As descobertas da Antropologia para a abordagem do conceito de Cultura e para a discussão sobre a diversidade cultural e a tolerância foram essenciais e seus efeitos espraiaram-se em outros campos de conhecimento, tanto nas Ciências Humanas quanto nas Ciências Naturais, inclusive balizando marcos legais e a fundamentação de direitos de comunidades tradicionais. A Ciência Política produz estudos sobre os sistemas eleitorais e as relações de poder, bem como a disputa de grupos sociais a partir de múltiplas abordagens teóricas que hoje se tornaram imprescindíveis para analisar os fenômenos políticos e de governabilidade. A Sociologia desenvolve pesquisas empíricas e teóricas em campos diversificados e oferece um grande volume de conhecimentos a respeito da sociedade contemporânea, das relações entre indivíduo e sociedade e das instituições sociais. Esta breve exposição mostra a relevância das Ciências Sociais na vida contemporânea, como base para a compreensão das relações sociais que influenciam a vida de cada um de nós e nossos destinos coletivos, sendo imprescindível para o exercício da cidadania e para a participação ativa nas práticas sociais.
8 – O que norteou o desenvolvimento de estratégias de ensino e de produção de material didático foi o efetivo ensino da disciplina de Sociologia em sala de aula, possibilitado pela obrigatoriedade no currículo a partir de 2008. Assim, não é adequado diluir este avanço e acúmulo numa área ampla e vaga de conhecimentos, cujo teor e fundamentação ainda permanecem desconhecidos e não são suficientemente apresentados pelo documento.
9 – O documento afirma que as Ciências Socais facilitam os estudos e as abordagens dos fatos sociais. Em primeiro lugar, fato social é um conceito que assume significados precisos conforme certos autores e abordagens teóricas, não podendo ser empregado de maneira genérica. O uso deste conceito é apenas uma perspectiva teórico-metodológica dentre outras existentes que podem ser utilizadas na análise da realidade social.
10 – O último parágrafo do documento é vazio de significado relevante. Induz ao erro de percepção de que se não houver comprometimento com o desenvolvimento de competências, não é possível o desenvolvimento do que chamam de olhares para as relações sociais. Não é necessário que se desenvolvam competências para que haja o desenvolvimento do olhar sociológico. As teorias têm como base o conhecimento que as embasa e, sendo assim, utilizá-las para o desenvolvimento de competências é apenas um dos possíveis usos, não sendo imprescindível para a realização do ensino de sociologia.
11 – O texto possui diversos erros gramaticais, ortográficos, semânticos e de coesão e coerência textual que dificultam a compreensão do conteúdo, o que é preocupante num documento curricular que pretende servir de orientação aos professores.
TRANSCRIÇÃO ORIGINAL DO CURRÍCULO APRESENTADO PELA SEDUC PARA A DISCIPLINA SOCIOLOGIA
SOCIOLOGIA
Sendo a Sociologia um dos mais recentes campos da ciência, sua presença na Educação Básica, por certo, também se faz presente há pouco tempo. No início do século duas correntes, em especial, procuravam se fazer presente na orientação de como a Sociologia deveria ser ensinada nas escolas brasileiras, quais sejam: o grupo da “sociologia cristã”, cujo objeto, além da investigação da vida social, postulava a instituição de padrões de conduta de acordo com preceitos cristãos, que teria condições de manter o equilíbrio social; o grupo ligado à Escola Nova, que defendia a sintonia com o “mundo moderno”, permeado por progressos científicos e tecnológicos, nos mais variados campos. Contudo, diferentemente de os outros componentes curriculares, a presença da Sociologia no currículo da Educação Básica sempre foi insipiente, com presença mais constante na “escola normal”. Na segunda metade do século XX, sua presença se tornou obrigatória a partir da Lei 11.684/2008. A esse tempo, observou-se que dada a natureza científica da Sociologia, com orientação para estratégica para os processos de “desnaturalização” e “estranhamento” claramente definido, apresenta-se bastante adequado para atual conjuntura da Educação Básica. Esse entendimento norteou o desenvolvimento de estratégias de ensino e a produção de materiais didáticos. Além disso, ele também facilita o estudo e a abordagem que diversos autores da Sociologia tomam frente ao fato social. Soma-se a isso, o fato de os demais componentes da área de Ciências Humanas também se alinharem à essa configuração didática, e constituição uma forma de ensinar a Sociologia de forma contextualizada, ampliando, inclusive, os recursos didáticos para sua aprendizagem pelos estudantes. A partir destas percepções é possível reconhecer que a área de Ciências Humanas apresenta uma significativa multiplicidade de olhares acerca das relações humanas, que contextualizadas, articuladas e comprometidas com o desenvolvimento de competências, oportunizará aos estudantes ampliar a dimensão do projeto de vida, fortalecendo a dimensão da cidadania.”SEDUC. Questionário. Opinião sobre o Currículo. Disponível AQUI
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